3.6.09

Entrevista com Chartier

Achei uma entrevista com Roger Chartier, feita em 2004 pela jornalista Isabel Lustosa e publicada no site Observatório da Imprensa, da qual destaquei algumas declarações sobre a relação entre internet e leitura. Clique na palavra entrevista para ler a versão completa.

"O computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é responsável também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades contemporâneas. No computador tanto se pode ler os clássicos como publicações acadêmicas e revistas em geral. Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedoras, mas são leituras."

"É difícil entender a articulação sempre instável entre as novas formas culturais, as novas preferências dos jovens e o que se mantém como uma referência fundamental. O fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador, suas leituras prediletas, não pertençam àquele repertório definido como literário não é necessariamente algo ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultura e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e forneceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a compreensão de si mesmo e a representação do outro."

"É preciso dar aos usuários da internet instrumentos críticos para entender como os textos foram construídos, para avaliar o grau de seriedade de cada local. Não podemos minimizar o significado da ruptura de um mundo onde objetos e textos estão vinculados através de materialidades múltiplas com um mundo em que a mesma superfície iluminada do monitor dá a ler todos os gêneros textuais. A reflexão sobre essas transformações muda a percepção dos textos e de suas diferenças."

"Há uma descontinuidade com a leitura com que estávamos familiarizados e isto implica na transformação da relação fundamental com algo que continua a ser um texto, mesmo que em diferentes formas. A leitura eletrônica é uma leitura da fragmentação, dos extratos de livro, sem que se saiba nada sobre a totalidade da qual se extraiu aquele fragmento, pois o fragmento eletrônico não mantém nenhuma ligação com o texto que garantia o conhecimento da totalidade. O problema é saber se a internet pode superar a tendência à fragmentação."

"O copyright se baseia na idéia de que o texto é uma criação, uma parte do indivíduo, expressão de seus sentimentos, de sua linguagem. A relação entre o texto e a subjetividade, a idéia de que o texto é uma projeção do indivíduo tendo como consequência econômica a propriedade do texto surge a partir da metade do século 18. O problema da circulação textual em forma eletrônica, quando não há formas de se fechar o texto, é que ela criou dificuldades para os direitos de propriedade literária. Cada texto pode ser alterado pelo leitor e enviado pela internet. Essa maleabilidade do texto na forma eletrônica tornou difícil proteger o direito de propriedade literária."

"Foucault apresentou na sua conferência inaugural do Collège de France a idéia de um mundo textual sem apropriações, sem nome, feito de ondas textuais que se sucediam, onde cada um poderia escrever suas palavras em um discurso já existente. Era um paradoxo, porque ele apresentava seu sonho de uma textualidade coletiva, indefinida, a partir da posição mais individualizada, a mais prestigiosa da universidade francesa. De certa forma a internet permite aos autores que realizem esse sonho à medida que deixa o texto aberto às escritas, apropriações e alterações. Mas há aqueles fiéis ao século 18 que reivindicam a propriedade literária e a identidade da autoria."

"A outra grande diferença é que no mundo do texto impresso há uma correspondência entre o tipo de publicação e o tipo de textos que se publica nela. Uma revista não é um jornal, que não é um livro, que não é um documento oficial, que não é uma carta. Há uma hierarquia de objetos que correspondem a uma diferenciação na taxonomia do texto. O computador quebra isso. A partir do momento em que o mesmo aparato, na mesma forma, dá a ler todos os tipos de discursos em termos de gênero, da carta ao livro, ou em termos de autoridade, é mais difícil para o leitor que não está preparado fazer a diferenciação imediata - que está muito mais evidente no material impresso."


Um comentário:

Márcia Fortunato disse...

Muito interessante, Bel, esta entrevista.
A conferência inaugural do Foucault no Collège de France a que ele se refere é "A ordem do discurso" que creio está disponível na internet (mandarei por email uma cópia que tenho em pdf). Leia especialmente o início dessa conferência que traz a ideia a que Chartier se refere.
Beijos, Márcia.